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"Conheci meu pai antes de mim mesmo. Sou, assim, um pouco ele. Sem presença de mãe, o peito ossudo de Silvestre Vitalício foi meu único colo, sua velha camisa foi meu lenço, seu ombro magro foi minha almofada. Um monocórdico ressonar foi o meu único canto de embalar.
Durante anos, meu pai foi uma alma doce, seus braços davam a volta à Terra e neles moravam os mais antigos sossegos. Mesmo sendo ele a estranha e imprevisível criatura, eu via no velho Silvestre o único sabedor de verdades, o solitário adivinhador de presságios.
Hoje, eu sei: meu pai tinha perdido os Nortes. Ele vislumbrava coisas que mais ninguém reconhecia. Essas aparições aconteciam, sobretudo, nas grandes ventanias que em Setembro, varrem as savanas. O vento era, para Silvestre, uma dança de fantasmas."
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Pequeno excerto de Jesusalém,
o livro mais recente de Mia Couto.
"A vida é demasiado preciosa para ser esbanjada num mundo desencantado", diz um protagonista deste romance.
A prosa poética, tão pessoal, deste escritor moçambicano ajuda, certamente, a reencantar este nosso mundo.