sexta-feira, 28 de outubro de 2011

AS FLORES




Era preciso agradecer às flores
Terem guardado em si,
Límpida e pura,
Aquela promessa antiga
De uma manhã futura.

Sophia de Mello Breyner

Imagem Iness Rychlik

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

QUASE DE NADA MÍSTICO



Não, não deve ser nada este pulsar
de dentro: só um lento desejo
de dançar. E não deve ter grande
significado este vapor dourado,

e invisível a olhares alheios:
só um pólen a meio, como de abelha
à espera de voar. E não é concerteza
relevante este brilhante aqui:

poeira de diamante que encontrei
pelo verso e por acaso, poema
muito breve e muito raso,
que (aproveitando) trago para ti.



Ana Luísa Amaral

Imagem: Google

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

A MENINA E O ARCO-ÍRIS


Todo o dia, a menina corria o quintal, procurando um arco-íris. Corria olhando para o alto, tropeçava e caía. Toda vez que se machucava, vinha chorando uma cor. Um dia, chorou o anil até esvaziá-lo dos olhos. Depois chorou laranja, chorou vermelho e azul. Chorou verde. Violeta. Amarelo e até transparente! Chorou todas as cores que tinha, todas as cores de dentro. Então, abriu os olhos e nem o arco-íris ela viu. Não viu flores e borboletas. Não viu árvores e passarinhos. Pensando que era  ainda noite,
deitou-se na cama e dormiu. Pensando que era tudo escuro, nem levantar-se ela quis! Ficou dormindo cinzenta, por dias e noites sem fim...
Foi quando um sonho, tão colorido, derramou-se dentro dela! Tingiu o travesseiro e a fronha, o lençol e o pijaminha. Tingiu a meia e o quarto. Tingiu as casas e os ninhos! A menina abriu a janela e viu que hoje não tinha arco-íris. Mas tinha o desenho das nuvens. Tinha as flores e um passarinho!


Rita Apoena

Imagem: Ruth Morehead

segunda-feira, 17 de outubro de 2011




[...]

Quando a gente percebe, já é noite e o céu, se está disposto a falar, diz estrelas. Quando a gente percebe, as pétalas já descansam o seu sorriso no colo do chão. Quando a gente percebe, o canto da onda já enterneceu a areia. Muitas dádivas que nos encontram, que nos encantam, têm seu tempo de viço, sua hora de recado, e seu momento de transformação em outro jeito de lindeza.

[...]

Ana Jácomo

Imagem: Enrique Ochotorena

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

O GOMO DE LARANJA


Que nuvens são aquelas que fazem sombra no mar?
Inquietam-me de tão quietas...
Serão nuvens do oriente saturadas de maus presságios
ou nuvens grávidas de dias salgados e amargos
 de dias marinados com lágrimas sem tempero
[um pé de tomilho, um raminho de erva-doce, que fosse] ?

 Sombra que me desassossega o mar,
me entristece o olhar das gaivotas
e
me anoitece.

Olho o negro azul do céu... o gomo de laranja
duma lua crescente, luminosa, aparece,
passeia a sua beleza
 a sombra quase esquece.
 
Maripa

Imagem: Google

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

CORAGEM



É preciso arranjar outros
motivos
outras flores e astros

Outras abertas

Entre a chuva cansada de um Outono
que não sabe já
qual é a terra certa

É preciso pensar outras imagens
outras fissuras, sítios
e cidades

Pôr fim ao lamento deste vento
tentar tirar ao anjo
a túnica e o sabre

É preciso inventar outras paisagens
outros montes e águas
outras margens

Abrir e expor o coração
e finalmente deixar
correr as lágrimas


Maria Teresa Horta

Imagem: Elena Kalis

terça-feira, 4 de outubro de 2011

AS AVES



Afluem às margens, jogam
como se a água lhes pertencesse,
pousam no meio dos arbustos
como se tivessem todo o tempo! No

entanto, sabem que as nuvens
vão encher o céu; e que o norte
irá enviar o vento frio que as
há-de arrastar para o sul, deixando
atrás de si o silêncio
nos campos. Mas pouco lhes importa
isso, quando se juntam, e
cantam a efemeridade do
instante.

Nuno Júdice

Imagem: Alloxa

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

APRENDAMOS O RITO



Põe na mesa a toalha adamascada,
Traz as rosas mais frescas do jardim,
Deita o vinho no copo, corta o pão,
Com a faca de prata e de marfim.

Alguém se veio  sentar à tua mesa,
Alguém a quem não vês, mas que pressentes.
Cruza as mãos no regaço, não perguntes:
Nas perguntas que fazes é que mentes.

Prova depois o vinho, come o pão,
Rasga a palma da mão no caule agudo,
Leva as rosas à fronte, cobre os olhos,
Cumpriste o ritual e sabes tudo.

José Saramago

Imagem: Google

sábado, 1 de outubro de 2011

DOCEMENTE



Docemente
disponho dos teus braços

dos peixes que navegam
docemente

Docemente
disponho em minha face

a faca dos teus olhos
docemente

Docemente
canso, disponho do cansaço

primeiro do teu afago
docemente

Docemente
afago, a tua boca apago

e vou negando a minha
docemente

Maria Teresa Horta

Imagem: Michael & Inessa Garmash