quarta-feira, 26 de junho de 2013






(...) Meu Deus, a pouco e pouco vamo-nos tornando sotãos onde o passado amarelece, a pouco e pouco os sotãos invadem a casa que somos, principiamos a mover-nos entre sombras truncadas de gente, emoções, memórias. Lentamente tiram-nos tudo, o presente afunila-se, o futuro uma parede. E nós, apesar de adultos, tão crianças, assustados, perdidos, juntando pedaços dispersos para nos reconstruirmos de novo, continuarmos. Na direcção de quê? Para onde? Quem nos espera ainda? (...)





António Lobo Antunes in Livro de Crónicas

Imagens: Cristin Atria












sexta-feira, 21 de junho de 2013

A LETRA MAIS PEQUENA






Caminhas pela praia. As sandálias nas dunas
junto à erva agreste de outros dias. O sol
não te queima, não te fere os olhos ao meio-dia.
Soletramos o amor com a letra mais pequena de uma língua
acabada de inventar. Sabem as gaivotas. Sabe o mar.
Era uma vez. Era assim que se agasalhava a noite
e me enrolava nos teus olhos para encontrar
a luz. Não é com a memória que caminho.
As manhãs são de névoa como as camarinhas
que cresciam nas dunas. Com quem posso 
agora falar de camarinhas? Saborear o gosto
das bagas e dos risos. Vamos apanhando conchas,
castelos, príncipes, borboletas. Vamos perdendo
o que encontramos. As mãos vazias.  Os passos leves.
Os olhos crescem como a erva nas sandálias.


Rosa Alice Branco

Imagens : Google








quarta-feira, 12 de junho de 2013






(...) Por vezes é preciso esquecer para poder continuar. Esquecer, ou pelo menos afastar para um lugar onde não andem à solta, fazendo estragos, provocando sentimentos à deriva, experiências que nos fazem temer que não somos nós que temos mão sobre a vida, mas ela que tem a sua mão sobre nós. (...)


Pedro Paixão in " A cidade depois"

Imagens: Elena Dudina e Google









sábado, 8 de junho de 2013

UM MAR




um mar

era um mar desmesurado
demasiado mar
e ondas
e poder
e grito por vir

era a emoção súbita
a revelar ao meu corpo
sua natureza fragilíssima
sua pequena natureza humana

era o mar a crescer-me no peito
vozes do mundo
homens e mulheres no amor

era o mundo líquido
suspenso entre a minha respiração
e o vértice da minha vida

Silvia Chueire

Imagens: Google








quarta-feira, 5 de junho de 2013

BREVE






Breve
o botão que foste
e o pudor de sê-lo.
Breve
o laço vermelho
dado no cabelo.
Breve
a flor que abriu
e o sol mudou.
Breve 
tanto sonho findo
que a vida pisou. 

João José Cochofel

Imagens: Google





domingo, 2 de junho de 2013

ANTES QUE






Antes que

Preciso ler um bom poema antes
de dormir
antes que a noite encerre o
diário inventário das lembranças
antes que o sono cale a boca e olhar, antes
que o prumo caia
horizontal.
Preciso ler um bom poema antes
que seja tarde
que fique escuro
que chegue o frio.
Ler um bom poema
antes que a morte venha
e escreva o seu.

Marina Colasanti

Imagens: Google




sábado, 1 de junho de 2013

DIA MUNDIAL DA CRIANÇA





Quando eu era menina, olhava o rio que corria ao encontro do mar e,
com prazer, diluía os olhos que então tinha na beleza dos reflexos que a luz do sol desenhava nas águas mansas... 

Quando eu era menina apanhava flores silvestres e com elas fazia raminhos; abraçada à sua cor, deixava-me levar até ao arco-íris mais próximo.

Quando eu era ainda menina, sentava-me no chão a roer maçãs à sombra da macieira que me servia de chapéu; ali ficava, pensativa, a olhar o céu, esperando a resposta a tantas perguntas que me escorriam pelos cantos da boca. 
Respostas impossíveis às perguntas impossíveis com que nasci...

Quando eu era menina nem tudo era simples, mas a fantasia, num passo mágico, transformava as dificuldades em borboletas e tudo voltava a brilhar...

Por isso gostei tanto de ser menina, de ser criança.

Ainda hoje guardo em mim pedaços dessa menina.

Maripa



Imagens: Ruth  Morehead