quarta-feira, 30 de outubro de 2013

PALAVRAS LÍQUIDAS







É tão difícil guardar um rio
sobretudo quando ele corre
dentro de nós...

Jorge de Sousa Braga

Imagens: Mark Mawson









sábado, 26 de outubro de 2013

CHEGAM DO MAR





Chegam do mar ecos de sons musicais
- quais lamentos tristes e dolentes -
que se apoderam da inquietude da noite
saturada de sombras, luar e  água.

As gaivotas, pressentidos os sinais
da turbulência das marés,
faz tempo que fizeram poiso
em longínquos poentes.

Dentro de mim 
há janelas embaciadas
a refletir imagens turvas. 
Dentro de mim
o pen[s]ar é  infinito
e pretérito imperfeito
de tantas arritmias desequilibradas.


Mas sei que os sons 
que chegam do mar
me vão humedecendo a alma
me vão acalmando os ventos
me vão fazer evadir 
e talvez regressar.

Talvez... 


Maripa

Imagens: Google




quinta-feira, 24 de outubro de 2013

AMANHÃ...






Amanhã...

Pode ser que o tempo passe
e não me guarde o sorriso pronto,
o olhar aceso, a palavra mansa.

É que às vezes é tudo tão longe
que até a persistência da ilusão se cansa.


Helena Chiarello

Imagens: Google




segunda-feira, 21 de outubro de 2013

MELODIA





Este é o orvalho dos teus olhos.
Esta é a rosa dos teus vales.
O silêncio dos olhos está no silêncio das rosas.
Tu estás no meio,
entre a dor e o espanto da treva.
Arrancas-te ao mundo e és a perfumada
distância do mundo.
Chego sem saber, à beira dos séculos.
Despenho-me nos teus lagos quando para ti
canta o cisne mais triste.
O pólen esvoaça no meu peito, junto às tuas
nuvens.
Esta é a canção do teu amor.
Esta é a voz onde vive a tua canção.
As tuas lágrimas passam pela minha terra 
a caminho do mar.


José Agostinho Baptista

Imagens : Google








quinta-feira, 17 de outubro de 2013

IDENTIDADE






Preciso ser um outro
para ser eu mesmo

Sou grão de rocha
Sou o vento que a desgasta

Sou pólen sem insecto

Sou areia sustentando
o sexo das árvores

Existo onde me desconheço
aguardando pelo meu passado
ansiando a esperança do futuro

No mundo que combato morro
no mundo por que luto nasço



Mia Couto [vencedor do Prémio Camões 2013]

Imagens: Google 



 

sábado, 12 de outubro de 2013

HÁ UMA VOZ A CHAMAR POR MIM







Há uma voz dentro das sombras da noite
a chamar por mim.
Uma voz a atravessar o silêncio
e a sussurrar repetidamente
uma frase, uma pequena frase
densa e subtil.

Desencantadamente
ouço a maré negra das palavras
que ondulam roucas e sem brilho.

Já perdi a memória aos dias brancos.

Agora, seguro o instante junto ao peito.
O instante intemporal é quase,
quase sempre [im]perfeito.

No turbilhão dos instantes, sonho...

Sonho
que enquanto das nuvens se desprendem
chuvas de corações, de rosas, 
de pássaros azuis, 
eu,
com o vagar dos sem tempo,
amontoo, pedra sobre pedra, 
os sentires e os sabores 
da passagem até ao instante final.

Já não sei onde estou...perdi-me de mim.

Se me encontrar
vou erguer uma cabana
no alto da minha pequenez
para poder enxergar o mar...

Maripa

Imagens: Paul David Bond









quinta-feira, 10 de outubro de 2013

A LEITORA



Imagem: Google


A leitora abre o espaço num sopro subtil.
Lê na violência e espanto da brancura.
Principia apaixonada de surpresa em surpresa.
Ilumina e inunda e dissemina de arco em arco.
Ela fala com as pedras do livro, com as sílabas da sombra.

Ela adere à matéria porosa, à madeira do vento.
Desce pelos bosques como uma menina descalça.
Aproxima-se das praias onde o corpo se eleva.
em chama de água. Na imaculada superfície
ou na espessura latejante, despe-se das formas,

branca no ar. É um torvelinho harmonioso,
um pássaro suspenso. A terra ergue-se inteira
na sede obscura de palavras verticais.
A água move-se até ao seu princípio puro.
O poema é um arbusto que não cessa de tremer.


António Ramos Rosa




Imagem: Gerry Sibell


sábado, 5 de outubro de 2013

SOMOS FOLHAS BREVES






Somos folhas breves onde dormem
aves de silêncio e solidão.

Somos só folhas ou o seu rumor.
Inseguros, incapazes de ser flor,
até a brisa nos perturba e faz tremer.

Por isso a cada gesto que fazemos
cada ave se transforma noutro ser.



Eugénio de Andrade

Imagens: Google







quarta-feira, 2 de outubro de 2013

QUANDO EU MORRER




Quando eu morrer
não me dêem rosas
mas ventos.

Quero as ânsias do mar
quero beber a espuma branca
duma onda a quebrar
e vogar.

Ah, a rosa dos ventos
a correrem na ponta dos meus dedos
a correrem, a correrem sem parar.
Onda sobre onda infinita como o mar
como o mar inquieto
num jeito
de nunca mais parar.

Por isso eu quero o mar.
Morrer, ficar quieto,
não.
Oh, sentir sempre no peito
o tumulto do mundo
da vida e de mim.

E eu e o mundo.
E a vida. Oh mar
o meu coração
fica para ti.
Para ter a ilusão
de nunca mais parar.


Alexandre Dáskalos

Imagens: Google










terça-feira, 1 de outubro de 2013

TOCO A FONTE


Imagem de Martine Anis-Aubin




Toco a fonte
como um vento que separa as flores secas
das raízes humildes dos últimos
jardins - como as lágrimas felizes
bebo o teu perfume, minha promessa
de vinho. Procuro nos caminhos secretos
o fim do luto, o silêncio dos abismos tranquilos
onde a sombra do lago é uma metáfora
esquecida. Entro
na ardência oculta
saboreando a migração das noites brancas.
O meu sangue converte-se em laranja.
E tu, meu amor, o que esperas tu
do navegador das trevas?


Casimiro de Brito



Imagem: Google