terça-feira, 26 de novembro de 2013

MAIS ALTO E MAIS ALÉM



Mais longe, mais além
do vale das sombras, não distingo as madrugadas.

Os pássaros cantores voam para o alto
deixo de poder ver a beleza das rosas orvalho
e de olhos líquidos
entristeço por mim adentro.




Só o silêncio me abraça na muda escuridão.

Há o prenúncio de gaivotas amanhecidas
a pairar sobre o mar e a miragem rara
de peixes azuis a voar na crista das ondas.
Há uma maré viva de rendas de espuma
a lembrar carícias apetecidas na lua cheia.

Se o sol conseguisse transpassar
as brumas da memória plena de poeiras
de penas, espessas vagarosas [e]ternas.

Se os olhos desocupados do brilho de outrora
tivessem breves momentos de epifanias
ecoaria em mim o hino de uma nova aurora.

Mais alto, lá longe,
                               mais alto e mais além.


Maripa

Imagem de Audrey Kawasaki
  

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

DEZ CHAMAMENTOS AO AMIGO


Se te pareço noturna e imperfeita
Olha-me de novo. Porque esta noite
Olhei-me a mim como se tu me olhasses.
E era como se a água 
Desejasse


Imagem de Christiane Vleugels



Escapar de sua casa que é o rio
E deslizando apenas, nem tocar a margem.

Te olhei. E há tanto tempo
Entendo que sou terra. Há tanto tempo
Espero
Que o teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta

Olha-me de novo. Com menos altivez.
E mais atento.

Hilda Hilst

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Olhos baixos




[...]
Olhos baixos, o médico escutou tudo, sem deixar de escrevinhar num papel. Aviava já a receita para poupança de tempo. Com enfado o clínico se dirigiu ao menino:
- Dói-te alguma coisa?
- Dói-me a vida, doutor...
O doutor suspendeu a escrita. A resposta,sem dúvida,o surpreendera.
Já Dona Serafina aproveitava o momento: 
Está a ver, doutor? Está a ver? O médico voltou a erguer os olhos e a 
enfrentar o miúdo:
- E o que fazes quando te assaltam essas dores?
- O que melhor sei fazer, excelência.
- E o que é?
- É sonhar.
[...]


Mia Couto in O  Fio das Missangas

Imagem da net

sábado, 16 de novembro de 2013

NOVEMBRO






Novembro apagou nas buganvílias
seus nomes brancos, roxos, escarlates.

É mais difícil regressar a casa:
o caminho disfarçou, emudeceu
seu rosto nos muros e nas grades.

 - Por onde seguiremos
sem que o outono espesso nos trespasse?


José Bento in Um sossegado silêncio

Imagens da net




OLHANDO O MAR,SONHO SEM TER DE QUÊ


Imagem da net



Olhando o mar, sonho sem ter de quê.
Nada no mar, salvo o ser mar, se vê.
Mas de se nada ver quanto a alma sonha!
De que meI servem a verdade e a fé?

Ver claro! Quantos, que fatais erramos,
Em ruas ou em estradas ou sob ramos,
Temos esta certeza e sempre e em tudo
Sonhamos e sonhamos e sonhamos.

As árvores longínquas da floresta
Parecem, por ser longínquas, estar em festa.
Quanto acontece porque se não vê!
Mas do que há pouco ou não há o mesmo resta.

Se tive amores? Já não sei se os tive.
Quem ontem fui já hoje em mim não vive.
Bebe, que tudo é líquido e embriaga,
E a vida morre enquanto o ser revive.

Colhes rosas? Que colhes, se hão-de ser
Motivos coloridos de morrer?
Mas colhe rosas. Porque não colhê-las
Se te agrada e tudo é deixar de o haver?


Fernando Pessoa



Imagem de Liliane Salmon 


quinta-feira, 14 de novembro de 2013

UM HOMEM PRECISA VIAJAR






" Um homem precisa viajar. Por sua conta, não por meio de histórias, imagens, livros ou TV. Precisa viajar por si, com seus olhos e pés, para entender o que é seu. Para um dia plantar as suas próprias árvores e dar-lhes valor. Conhecer o frio para desfrutar o calor. E o oposto. Sentir a distância e o desabrigo para estar bem sob o próprio teto. Um homem precisa viajar para lugares que não conhece para quebrar essa arrogância que nos faz ver o mundo como o imaginamos e não simplesmente como é ou pode ser. Que nos faz professores e doutores do que não vimos, quando deveríamos ser alunos e simplesmente ir ver.

Amyr Klink 

Imagem da net

  

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

A MENINA DA LUA


A menina da lua vestida de borboletas
olha o firmamento, deslumbrada,
pensamento a borbulhar de palavras.








Debaixo dos pés escorre-lhe um regato.
Anicha-se e começa a escrevinhar na água

[as palavras escritas na água
sabem o seu destino...]

Palavras de veludo, amor, seda pura,
ternura bordada de coragem,                  medo,
[entre]tela com risos pintados à mão,
acentos lado a lado com vírgulas,
muitos pontos de interrogação. 

De corpo invisível e efémero
em desassossego e apreensivas
nadam desagregadas em afluentes
agitados, esparsas a caminho do mar
ao encontro de lágrimas incontidas.

A menina da lua reage ao calor do afago
à vertigem
à urgência do espanto da borboleta
mãe do [uni]verso em transformação.


Maripa 
Imagem de Karin Taylor 

                

domingo, 10 de novembro de 2013

NEM TUDO


NEM TUDO


Nem tudo é proibido:
a rosa é dádiva
e há pétalas no caminho salpicadas




O sol é dádiva
o mar, o vento, o fruto
o pouso do guerreiro e as suas asas
abertas na ilusão do viandante

A sombra, o sonho, o olhar de súplica
a voz inesperada, o amor incerto
o gesto sôfrego, o adeus, o abraço, o afago
... nem tudo é proibido

A vida passa na folha que cai
no momento perdido
e na dúvida que fere vezes mais
que este medo de espinhos de que fugimos


Mauro Salles

Imagem: Google

sábado, 9 de novembro de 2013

PENSAR EM TI É COISA DELICADA



Pensar em ti é coisa delicada.
É um diluir de tinta espessa e farta
e o passá-la em finíssima aguada 
com um pincel de marta.






Um pesar grãos de nada em mínima balança
um armar de arames cauteloso e atento,
um proteger a chama contra o vento,
pentear cabelinhos de criança.

um desembaraçar de linhas de costura,
um correr sobre lã que ninguém saiba e oiça,
um planar de gaivota como um lábio a sorrir.

Penso em ti com tamanha ternura
como se fosses vidro ou película de loiça
que apenas com o pensar te pudesse partir.


António Gedeão

Imagem da net


sexta-feira, 8 de novembro de 2013

ATÉ QUE PONTO?



Imagem: Google


Até que ponto, as estrelas pousadas no céu pintado de azul, podem clarear as ideias que fazem questão de me atormentar a noite? A contra luz, consigo juntar pensamentos meio acesos com outros envoltos em sombra e que nunca fazem sentido algum. Preciso ressuscitar a memória, gerar pontos de luz com os pirilampos da minha infância, guardar as histórias coladas a mim e que segredam que ainda estou viva.

As estrelas foram as melhores companheiras de vigílias, sonhos e momentos mágicos.
A nossa cumplicidade foi sempre de anoiteceres e [de]lírios...

Até que ponto posso esquecer isso?



quarta-feira, 6 de novembro de 2013

FOLHAS


                                               FOLHAS

Era uma folha pousada
no cotovelo do vento;
e pairava, deslumbrada,
entre morte e movimento.

                              
Imagem de Gilda Pontes



                             Era uma folha: e lembrava,
                             de tão frágil, o momento
                             em que a vida ficava
                             escrava do teu juramento.


                             Era uma folha: mais nada.
                             Antes fosse esquecimento!                        



David Mourão-Ferreira


SONETO DO DESMANTELO AZUL

                                                 

Imagem de Dj Sousa



Então pintei de azul os meus sapatos
Por não poder pintar de azul as ruas,
Depois, vesti meus gestos insensatos
E colori as minhas mãos e as tuas.

Para extinguir de nós o azul ausente
E aprisionar no azul as coisas gratas,
Enfim, nós derramamos simplesmente
Azul sobre os vestidos e gravatas.

E afogados em nós, nem nos lembramos
Que na amplidão que havia em nosso espaço
Pudesse haver de azul também cansaço.

E perdidos de azul nos contemplamos
E vimos que entre nós havia um sul
Vertiginosamente azul. Azul.


Carlos Pena Filho







Imagem de Melodie Hoareau

terça-feira, 5 de novembro de 2013

A FLOR QUE ÉS

                      

A flor que és,
não a que possa comprar,
te venho oferecer.

Porque não tem preço
o que te ofereço.

E se me debruço a colher a pétala,
a terra inteira em teus dedos se desfolha.




E se a mais pura flor para ti desenho
a inteira pétala no nada se despenha.
Porque és a sombra do sonho em que anoiteço.

Morrer é ter terra finita.
E eu tenho a febre da inatingível margem.
Por isso encho de mar o teu olhar.


Mia Couto

Imagem da Net

sábado, 2 de novembro de 2013

DESNECESSÁRIA EXPLICAÇÃO





Que importa a melodia,
se acaso aos outros dou,
com pávida alegria,
o pouco que me sou?

Que importa ao que me sabe
estar só no meu caminho, 
se dentro de mim cabe
a glória de ir sozinho?

Que importa a vã ternura
das horas magoadas,
se ao meu redor perdura
o eco das passadas?

Que importa a solidão
e o não saber onde ir,
se tudo, ao coração,
nos fala de partir?

Daniel Filipe

Imagens Net