quinta-feira, 30 de outubro de 2014

ESPERA






Deito-me tarde
Espero por uma espécie de silêncio
Que nunca chega cedo
Espero a atenção a concentração da hora tardia
Ardente e nua
É então que os espelhos acendem o seu segundo brilho
É então que se vê o desenho do vazio
É então que se vê subitamente
A nossa própria mão poisada sobre a mesa

É então que se vê passar o silêncio 

Navegação antiquíssima e solene



Sophia de Mello Breyner Andresen,  in GEOGRAFIA

Imagens: Amanda Cass








segunda-feira, 27 de outubro de 2014

LILLA PETE

 

                          LILLA PETE                                  

 Bach Es-dur Sonata Flute


" Não ouças o rouxinol. Nem a cotovia. 
É dentro de ti que toda a música é ave."



Eugénio de Andrade in Branco no Branco






sábado, 25 de outubro de 2014

BREVE CANÇÃO DO VENTO OESTE





Ele há-de vir o vento oeste
ele há-de vir e há-de levar
as vãs palavras que escreveste.
Ele há-de vir com seu presságio
e os címbalos que já trazem o som do inverno
ele há-de vir o vento oeste e há-de apagar
o verão que parecia ser eterno.

Ele há-de vir com seu adágio
suas orquestras em convés que vão ao fundo
ele há-de vir e há-de apagar
a escrita  a jura  as ilusões do mundo.

Em cada verso há um naufrágio
não sei de poema que não seja mar.


Manuel Alegre

Imagens: Adam Pekalski






segunda-feira, 20 de outubro de 2014

OS POEMAS SÃO PÁSSAROS


Raymond Mottl




Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam voo
como de um alçapão.
Eles não têm pouso
nem porto
alimentam-se um instante em cada par de mãos
e partem.
E, olhas, então, essas tuas mãos vazias,
no maravilhado espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti...



Mario Quintana





Imagem: GOOGLE


sexta-feira, 17 de outubro de 2014

LÁ...


Saleem  Khawar




Leva-me os olhos, gaivota,
e deixa-os cair lá longe naquela ilha sem rota...

Lá...
onde os cravos e os jasmins
nunca se repetem nos jardins...

Lá...
onde a mesma aranha tece a mesma teia
na mesma escuridão das mesmas casas...

Lá...
onde toda a noite canta uma sereia
... e a lua tem asas...
Lá...


José gomes Ferreira



terça-feira, 14 de outubro de 2014

ASTROS




Não vale a pena procurar astros morrentes, que para tal nos basta o espelho de água, nas voltas do tempo vário.
Grandiosa a corrida dos peixes rio acima, na sua estação de esperanças,
na ignorância da força da corrente.
Maior é a força que carregam.
Correm as folhas do Outono, monte abaixo, ao sabor da levada, arrefecida a seiva, cegas pelas esperas.
Entre o peixe e a folha um astro se levanta.
Nascentes, inaugurais, brotam  palavras.



Licínia Quitério

Imagens: GOOGLE






segunda-feira, 13 de outubro de 2014

TARDES INVENTADAS




As tardes inventei-as.

Fulgurantes umas,
sonolentas outras,
quentes ou arrepiantes
e todas
geradoras de instantes
impossíveis...

Atiro um braço ao ar
e quero que ele prenda um estrela,
um cometa, o floco de renda
de mil cassiopeias...

É dia e há luar...

As tardes inventei-as.



Saúl Dias

Imagens: GOOGLE




sexta-feira, 10 de outubro de 2014

CONFISSÃO





De um e outro lado do que sou, 
da luz e da obscuridade,
do ouro e do pó,
ouço pedirem-me que escolha;
e deixe para trás a inquietação,
a dor,
um peso de não sei que ansiedade.

Mas levo comigo tudo
o que recuso. Sinto
colar-se-me às costas
um resto de noite;
e mão sei voltar-me
para a frente onde 
amanhece.


Nuno Júdice

Imagens: Nathalie Picoulet







domingo, 5 de outubro de 2014

VIVER...





Viver uma vida desapaixonada e culta, ao relento das ideias, lendo, sonhando e pensando em escrever, uma vida suficientemente lenta para estar sempre à beira do tédio, bastante meditada para se nunca encontrar  nele. Viver essa vida longe das emoções e dos pensamentos , só no pensamento das emoções e na emoção dos pensamentos. Estagnar ao sol, douradamente, como um lago obscuro rodeado de flores. Ter , na sombra, aquela fidalguia da individualidade que consiste em não insistir para nada com a vida. Ser no volteio dos mundos como uma poeira de flores, que um vento incógnito ergue pelo ar da tarde, e o torpor do anoitecer deixa baixar no lugar de acaso, indistinta entre coisas maiores. Ser isto com um conhecimento seguro, nem alegre nem triste, reconhecido ao sol do seu brilho e às estrelas do seu afastamento.
Não ser mais, não ter mais, não querer mais... A música do faminto, a canção do cego, a relíquia do viandante incógnito, as passadas no deserto do camelo vazio sem destino...


Fernando Pessoa/Bernardo Soares  in Livro do Desassossego

Imagens: Google






quinta-feira, 2 de outubro de 2014

O TEMPO É OUTRO RIO


Sophia  Michailidou


Quase sempre o tempo é outro rio,
uma música larga e possessiva, uma forma
de avidez lunar, de apetite cósmico
que não nos poupa nem nos ama.
Prefigura este rio todo o assombro
que o século e o instante
semeiam na passagem, não passando.

A ruga é o leito de outra água,
da que rasga e avassala, da que arqueia
o dorso do que escreve e do que espera.
Um relógio de quadrante guarda-se
para a contabilidade de outras horas
que não as do sono, que não as do pasmo.

Demora-se o rosto a ver-se envelhecer,
reverbero de lua mansa na areia
onde o corpo ancora e se faz casa.

O tempo é outro rio que passa largo,
ao largo da boca que o chama e se consome.


José Jorge Letria



Brita Seifert