quarta-feira, 26 de novembro de 2014




(...)

  As flores, as flores que ali vivi ! Flores que a vista traduzia para seus nomes, conhecendo-as, e cujo perfume a alma colhia, não nelas mas na melodia dos seus nomes... Flores cujos nomes eram, repetidos em sequência, orquestras de perfumes sonoros... Árvores cuja volúpia verde punha sombra e frescor no como eram chamadas... Frutos cujo nome era um cravar de dentes na alma da sua polpa... Sombras que eram relíquias de outroras felizes... Clareiras, clareiras claras, que eram sorrisos mais francos da paisagem que se bocejava em próxima...Ó horas multicolores!... Instantes-flores, minutos-árvores, ó tempo estagnado em espaço, tempo morto de espaço e coberto de flores, e do perfume de flores, e de perfume de nomes de flores !...
  Loucura de sonho naquele silêncio alheio!...

(...)


Bernardo Soares/ Fernando Pessoa in Livro do desassossego

Imagens: Paul de Longpre





  

domingo, 23 de novembro de 2014

SE O TEMPO...




Se o tempo
fosse
uma flor, o seu 
perfume
seria 
esta luz
escorrendo
pelas escarpas
do dia.


Albano Martins in Antologia Poética

Imagens: Google



quinta-feira, 13 de novembro de 2014

ÂNSIA




Não me deixem tranquilo
não me guardem sossego
eu quero a ânsia da onda
o eterno rebentar da espuma

As horas são-me escassas:
dai-me o tempo
ainda que o não mereça
que eu quero
ter outra vez
idades que nunca tive
para ser sempre
eu e a vida
nesta dança desencontrada
como se de corpos
tivéssemos trocado
para morrer vivendo


Mia Couto

Pinturas: Victor Bauer 



segunda-feira, 10 de novembro de 2014

TALVEZ NÃO SAIBAS





Talvez não saibas
Mas dormes nos meus dedos
De onde fazem ninho as andorinhas
E crescem frutos ruivos e há segredos
Das mais pequenas coisas que são minhas

Talvez tu não conheças, mas existe
Um bosque de folhagem permanente
Aonde não te encontro e fico triste
Mas só de te buscar fico contente

Oh meu amor quem sabe se tu sabes
Sequer, que em ti existe, ou só demora
Ou são como as palavras essas aves
Que cantam o teu nome e a toda a hora

Talvez não saibas, mas digo que te amo
A construir o mar em nossa casa
Que é por ti que pergunto e por ti chamo
Se a noite estende em mim a sua asa

Talvez não compreendas , mas o vento
Anda a espalhar em ti os meus recados
E que há pôr do sol no pensamento
Quando os dias são azuis e perfumados

Oh meu amor quem sabe se tu sabes
Sequer, que em ti existe, ou só demora
Ou são como as palavras essas aves
Que cantam o teu nome e a toda a hora



Joaquim Pessoa

Imagens: Inna Tsukakhina






sexta-feira, 7 de novembro de 2014

NOTURNO





O pensamento apoiado à janela
se encolhe num canto da noite.
                                                Não há vozes
                                       nem sonhos.

Apenas uma certeza.
Se o silêncio tivesse tamanho
não caberia em lugar algum.


Helena Chiarello

Imagens:GOOGLE








terça-feira, 4 de novembro de 2014

DIA 34





Sagrado é o coração da árvore, a vigília da pedra, a gravidez da amêndoa, o pulsar do rio, a timidez do bosque, o trabalho discreto da semente. Sagrado é o lenho, e a erva, o cavalo, o boi e o cão, sagrado é o sol, sagrada a casa, a noite, o dia, o círculo e a pirâmide. E sagrado é o vento e a vontade, e o branco e a esperança. Sagrados são os montes e os filhos e os sentidos e os pássaros e os humildes. É sagrada a dança e a cabeça e o azul e a primavera. Sagrados são os cornos do inverno. E as flores amarelas. Sagrado é o desejo que humedece o corpo. Sagrada é a distância. E a memória. Sagrados são os lábios, o cérebro e as mãos. E os astros, e a espuma e a teimosia dos metais. E é sagrada a arte e o amor e a claridade. E o centro do homem. E a voz da terra. E o equilíbrio dos instintos. E o mistério dos mortos e dos vivos. E as razões do amor. Sagrada é a forma e a beleza e a luz e o fogo dos teus olhos.


Joaquim Pessoa, in Ano Comum 

Imagens: GOOGLE





domingo, 2 de novembro de 2014

RETRATO DE AMIGO




Por ti falo. E ninguém sabe. Mas eu digo
meu irmão     minha amêndoa     meu amigo
meu tropel de ternura     minha casa
meu jardim de carência    minha asa.
Por ti morro e ninguém pensa. Mas eu sigo
um caminho de nardos empestados
uma intensa e terrífica ternura
rodeado de cardos por muitíssimos lados.

Meu perfume de tudo     minha essência
meu lume     minha lava     meu labéu
como é possível não chegar ao cume
de tão lavado céu?


Ary dos Santos

Imagens: GOOGLE