segunda-feira, 31 de março de 2014

PALAVRAS DE ÁGUA







No espreguiçar da noite
por entre silêncios e pensares
não encontro sossego
                       no desassossego.

Por entre as pedras do rio de lamento e revolta
há palavras de água a cair insubmissas
                                                          para o abismo.

Porque preso aos elos da corrente da realidade
                        há o abril dos cravos e dos cardos
                o abril de olhos baixos e braços caídos.

E na procura do retorno às coisas simples,
                                                      de coração aberto
ao espanto das mãos sedentas de um novo devir
                                              [há de chegar o tempo
da primavera renovar a cor da liberdade

e da palavra florescer em tons de arco-íris.


Maripa

Imagens google







quarta-feira, 26 de março de 2014

SE FOR POSSÍVEL, MANDA-ME DIZER






Se for possível, manda-me dizer:
- É lua cheia. A casa está vazia -
Manda-me dizer. E o paraíso
Há-de ficar mais perto e mais recente
Me há-de parecer teu rosto incerto.
Manda-me dizer se tens o dia
Tão longo como a noite. Se é
Que sem mim só vês monotonia.
E se te lembras do brilho das marés
De alguns peixes rosados
Numas águas
E dos meus pés molhados, manda-me dizer:
- É lua nova -
E revestida de luz te volto a ver.


Hilda Hilst

Imagens Google





terça-feira, 25 de março de 2014

ANTES


Chelin Sanjuan



Antes que desça a noite,
imprimir na retina
               os rostos amados,
                                o sol
               as cores,
o céu de outono
e os jardins da primavera.

Inundar de sons
               de vozes
e de música eterna
                 os ouvidos
antes que os atinja
            a maré do silêncio.

Conquistar
os pontos culminantes
                              da vida,
         antes que se esgote
         o prazo de permanência
em seu território sagrado.


Helena Kolody







Chelin Sanjuan


domingo, 23 de março de 2014

COISAS MINHAS...




É no espreguiçar das noites que eu me apercebo que o meu tempo se está a alongar demasiado.  Uma caminhada longa... [quase 960 meses !]. Tive, ainda tenho, sonhos sonhados acordada e outros que dormem comigo. 
Os dias passam devagar, os livros fazem-me companhia, mas deixam-me tempo para me aconchegar aos meus silêncios e aos  agasalhos. Sempre sensível ao frio, no inverno quase hiberno. 
Sou bastante preguiçosa para sair de casa, mas nestes últimos dias em que o sol brilhou, obriguei-me a sair e dei uns pequenos passeios... "eu  (re)comecei a primaverar"*. Estou enferrujada, imenso.

Mas, o que importa mesmo é que dentro do meu peito moram todos os meus amores e dentro dele não cabem pássaros nem rancores.


Maripa

Imagens de KarinTaylor



 ( ...)   "Primaverar é persistir numa atitude de hospitalidade em relação à vida. Ao lado do previsto, irrompe o imprevisível que precisamos aprender a colher. "(...)
              
  José Tolentino Mendonça, na crónica da revista do Expresso desta semana.                                                       

                




sexta-feira, 21 de março de 2014

ÁRVORES QUE DITAM POEMAS




Hoje, o Dia Mundial da Floresta encontra-se com o Dia Mundial da Poesia e de mãos dadas encontram árvores que amam  poemas...


As árvores e os livros

As árvores como os livros têm folhas
e margens lisas ou recortadas,
e capas (isto é) copas e capítulos
de flores e letras de oiro nas lombadas.

E são histórias de reis, histórias de fadas,
as mais fantásticas aventuras,
que se podem ler nas suas páginas,
no pecíolo, no limbo, nas nervuras.

As florestas são imensas bibliotecas,
e até há florestas especializadas,
com faias, bétulas e um letreiro
a dizer: "Floresta das zonas temperadas".

É evidente que não podemos plantar
no teu quarto, plátanos ou azinheiras.
Para começar a construir uma biblioteca
basta um vaso de sardinheiras.


Jorge de Sousa Braga

Imagens de Johanna Wright










quinta-feira, 20 de março de 2014

FLORES








Era preciso agradecer às flores
Terem guardado em si,
Límpida e pura
Aquela promessa antiga
De uma manhã futura.




Sophia de Mello Breyner

Imagens Google





segunda-feira, 17 de março de 2014

FOSSE EU...



Ricardo Fernandes Ortega


Fosse eu vento para dar pressa ao veleiro
mesmo que em navegação perigosa.

Fosse eu paleta coroada de luz do sol
para recuperar a cor perdida da palavra em flor.

Fosse eu eternamente noite para respirar o teu sono
e eternamente manhã para te ver orvalho
soletrando um lírio branco.

Fosse eu sereia para te prender ao mar
e num só instante ler
um poema de ternura no teu olhar.


Rita Carrapato






sexta-feira, 14 de março de 2014

QUANDO VOLTARES






Quando voltares, põe na tua voz
aquela flor azul que te ofereci.
Talvez, assim, eu julgue reencontrar-te
e os olhos se encham, outra vez.

Ainda tens no gesto aquele susto
que se enrolava todo nos meus dedos
e punha à nossa volta
um colar de silêncio ardendo.

Tudo mudou, bem sei. Naquela tília
o outono já começou;
e nas tuas palavras
algumas folhas devem ter caído.

Mas, se voltares, põe a flor azul,
põe o passado no gesto e na voz.
Talvez assim eu julgue reencontrar-te
e os olhos se encham. É tão fácil!

António Cabral

Imagens  Google







terça-feira, 11 de março de 2014

NÃO ME PERTURBES





Não me perturbes.

Quero reclinar o meu peito no regaço da terra
descer num casulo de luz pairar como a bruma
na urze calada e perfumada da serra.

E não perturbes o meu silêncio
que dorme nas folhas das minhas mãos.

Na criança adormecida em mim
ficam as pegadas na presença dos silêncios,
nos diálogos e gestos escritos na areia polida
das minhas palavras.

E não perturbes o meu silêncio
que dorme nas folhas das minhas mãos.

Não perturbes estas folhas que rodeiam o meu corpo
povoando esta alma de música que ninguém ouve.
Não quero miscelâneas no meu poente.
Quero nascer os olhos em bocas de alegria.
Deixa-me ser criança, vestir de novo esta fantasia.

E não per tur bes o meu son ho.
Quero adormecer a noite  enganar a lua
morrer o passado nesta inquietação
desta 
chama 
nua   


Manuela Barroso

Fotos de Igor V. Kasputin









segunda-feira, 3 de março de 2014

TALVEZ NÃO SAIBAS





Talvez não saibas
Mas dormes nos meus dedos
De onde fazem ninho as andorinhas
E crescem frutos ruivos e há segredos
das mais pequenas coisas que são minhas

Talvez tu não conheças, mas existe
Um bosque de folhagem permanente
Aonde não te encontro e fico triste
Mas só de te buscar fico contente

Oh meu amor quem sabe que tu sabes
Sequer, se em ti existe, ou só demora
Ou são como as palavras essas aves
Que cantam o teu nome  e a toda a hora

talvez não saibas, mas digo que te amo
A construir o mar em nossa casa
Que é por ti que pergunto e por ti chamo
Se a noite estende em mim a sua asa

Talvez não compreendas , mas o vento
Anda a espalhar em ti os meus recados
E que há pôr do sol no pensamento
Quando os dias são azuis e perfumados

Oh meu amor quem sabe se tu sabes
Sequer, se em ti existe, ou só demora
Ou são como as palavras essas aves
que cantam o teu nome e a toda a hora



Joaquim Pessoa

Pinturas de Inna Tsukakhina 








domingo, 2 de março de 2014

POEMA DO ETERNO RETORNO





Há o teu rosto dentro do teu rosto: único e múltiplo.
As tuas mãos de outrora nas tuas mãos de agora
Há o primeiro amor que é sempre o último
antes do tempo ou só depois da hora.

E vinhas de tão longe. E era tão fundo.
Eu conheço-te. E era por mim. E era por ti. 
E era por dois.
E havia na tua voz o princípio do mundo.
E era antes da Terra. E era depois.


Manuel Alegre

Imagens da net