quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

TER ASAS






Ter asas de pássaro madrugador,
flutuar mais do que as nuvens
no íntimo dos azuis da imensidão,
é sonho.

Ter lágrimas de chuva maior
sentir o gotejar silencioso
no âmago trémulo de agitação,
é choro.

Choro murmurado, 
porque muito de mim é água,
mar longínquo, manhã de vento, 
saudade, desassossego e mágoa.


Maripa

Imagens Google







quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

CORRESPONDÊNCIA AO MAR





Quando penso no mar
A linha do horizonte é um fio de asas
E o corpo das águas é luar,

De puro esforço, as velas são memória
E o porto e as casas
Uma ruga de areia transitória.

Sinto a terra na força dos meus pulsos:
O mais é mar, que o remo indica,
E o bombeado do céu cheio de astros avulsos.

Eu, ali, uma coisa imaginada
Que o Eterno pica,
Vou na onda, de tempo carregada,

E desenrolo...
Sou movimento e terra delineada,
Impulso e sal, de pólo a pólo.

Quando penso no mar, o mar regressa
A certa forma que só teve em mim -
Que onde acaba, o coração começa.

Começa pelo aro das estrelas
A compasso retido em mente pura
E avivado nos vidros das janelas.

Começa pelo peito das baías
A rosar-se e crescer na madrugada
Que lhe passa ao de leve as orlas frias.

E, de assim começar, é abstracto e imenso:
Frio como a evidência ponderada.
Quente como uma lágrima num lenço.

Coração começado pelos peixes,
És o golfo de todo o esquecimento
Na minha lembrança que me deixes,

E a rosa dos ventos baralhada:
Meu coração, lágrima inchada,
Mais de metade pensamento.



Vitorino Nemésio, O Bicho Harmonioso, Coimbra, 1938

Imagens: GOOGLE