segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

RECOMEÇA



Um belo poema de Miguel Torga para começar 2020 

Recomeça….

Se puderes
Sem angústia
E sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.

E, nunca saciado,
Vai colhendo ilusões sucessivas no pomar.
Sempre a sonhar e vendo
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças…


Miguel Torga





domingo, 15 de dezembro de 2019

NATAL




Natal agora


Neste solstício de inverno ele vai nascer
algures no Mundo entre ruínas
no lugar do não ser ele vai nascer
deitado nas palhinhas entre
bombas naufrágios minas
cada mulher que foge o traz no ventre
o mesmo coração um só destino
algures no mundo ele vai ser
em todos os meninos o menino.


Manuel Alegre  [18.12.2015]















quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

PEQUENA ELEGIA CHAMADA DOMINGO



Pequena Elegia Chamada Domingo


O domingo era uma coisa pequena.
Uma coisa tão pequena
que cabia inteirinha nos teus olhos.
Nas tuas mãos
estavam os montes e os rios
e as nuvens.
Mas as rosas,
as rosas estavam na tua boca.

Hoje os montes e os rios
e as nuvens
não vêm nas tuas mãos.
(Se ao menos elas viessem
sem montes e sem nuvens
e sem rios...)
O domingo está apenas nos meus olhos
e é grande.
Os montes estão distantes e ocultam
os rios e as nuvens
e as rosas.


                  
Eugénio de Andrade



Imagens: Pinterest


quinta-feira, 21 de novembro de 2019

EM CADA NOITE ME APAGO




Em cada noite me apago e
me perco num labirinto de frases silenciosas.
A cada respiro,
enigmas por decifrar e
perguntas saídas do esquecimento
fazem ninho no beiral do meu peito.
E é de um chão atapetado de musgo e heras
que vejo o mundo fugir à velocidade de um suspiro.


Em cada dia me acendo
no fruto maduro das manhãs e
no deus que mata a sede do meu grito.

E é quase morrendo
que voo de sonho em sonho e
me sonho cotovia, asas de primavera,
pássaro leve cor do infinito.

Em cada noite me apago.
Em cada dia me acendo.

Maripa

["palavras minhas" publicadas em 2009]







 painting by Justina Kopania

quinta-feira, 14 de novembro de 2019

NÃO TE CHAMO PARA TE CONHECER

aguarela de Janet Rogers




Não te chamo para te conhecer
Eu quero abrir os braços e sentir-te
Como a vela de um barco sente o vento

Não te chamo para te conhecer
Conheço tudo à força de não ser

Peço-te que venhas e me dês
Um pouco de ti mesmo onde eu habite


Sophia de Mello Breyner



aguarela: Pinterest

sexta-feira, 8 de novembro de 2019

CHOVE



CHOVE

Lágrimas redondas dizem adeus aos olhares de Outubro.
Chove
no coração dos pássaros,
na fragilidade perfumada das flores,
nas árvores grávidas de frutos outonais.
Chove.
E na humedecida natureza
brilha a deusa- mãe de todas as cores.

Algures,
lágrimas redondas deslizam no espelho das horas
e afogam, sem dó, fantasias sonhadas, vividas ao rubro.



Maripa

["palavras minhas" em outubro de 2009]





Imagens: Pinterest

quarta-feira, 30 de outubro de 2019

PALAVRAS BORBOLETA




A névoa cobre os tectos da cidade...

Palavras cansadas espreguiçam-se
languidamente
e espreitam pela janela entreaberta
a nudez das folhas em branco
no jardim deserto e adormecido.

As palavras precisam ser regadas
pelo orvalho das manhãs
para serem renovadas e belas...

Sei que há palavras que dizem tudo,
[ou quase tudo]
que cantam hinos ao sol e à lua
aos rios e aos mar
palavras macias como veludo
que fazem nascer borboletas nos dedos
de mãos que não desistem de tocar as estrelas.


Preciso tanto de palavras borboleta para navegar!
                                                                                             
  Maripa

"palavras minhas" publicadas em 2010  




Imagens de Jennie Atkinson

quinta-feira, 24 de outubro de 2019

O AMOR QUE SEJA LÚCIDA LOUCURA






O amor que seja lúcida loucura,
O amor que seja uma e outra vez,
O amor que seja o vinho sem mistura,
O amor que seja a sede e a embriaguez,
O amor que seja a fome de ternura,
O amor que seja a pele e a nudez,
O amor que seja febre, a abrasadura
Que tome o corpo todo desde os pés
À cabeça no meio da fogueira,
Esse fogo que arde sem se ver,
O amor que seja água de primeira
Na boca do incêndio que vier,
O amor que seja o leito, a aluvião
Do rio caudaloso da paixão.

Domingos da Mota





segunda-feira, 14 de outubro de 2019

SEI QUE NUNCA VISTE O OCEANO





sei que nunca viste o oceano,
sei que nunca olhaste a onda sobre a onda,
que nunca fizeste castelos para o mar ser forte.

mas sei que já viste o coração das coisas,
que já tocaste a ferida nos nossos braços,
que já escreveste para sempre o nome da terra.

por isso te digo que vou levar-te o mar
na concha das minhas mãos, azulíssimo,
para que nele descubras o meu nome
entre os seixos os búzios os rostos que já tive.


Vasco Gato



Imagens: Pinterest




quinta-feira, 10 de outubro de 2019

NÃO IMPORTA




Dentro dos teus olhos navego mar adentro...
Não importa
o tempo sem tempo da espera.
O tempo do derramar
flores para ondear nas águas.
Não importa.
Pétalas hão-de cair dos mastros
da caravela onde hei-de dormir
o sono-sonho despido de mágoas.
Importa sim
que mar adentro,
dentro dos teus olhos,
afogue os meus num sonho branco.
Sono-sonho, isento de pecado,
mar de devaneios inocentes
onde mergulhe
e floresça em espuma.
Sono-sonho,
praia bordada de amores-perfeitos
onde a maresia me perfuma.


Maripa

[poema editado em 2009]







Imagens: Pinterest

terça-feira, 8 de outubro de 2019

PARA ESTAR JUNTO...













Se eu tivesse asas podia voar...






sexta-feira, 4 de outubro de 2019

...EM JEITO DE LUA NOVA




... em jeito de lua nova

Hoje sonhei que tive a lua
na minha mão.
Era macia, tinha  uma luz  alegre
e um perfume doce.
Cantava com voz de criança
uma oração que eu não entendia
em jeito de cantilena ou de trova.
E sorria, sorria sempre
com um sorriso tão presente
que acordei em jeito de lua nova.

Sonhei com um anjo lunar,
                          [certamente]...


Maripa



Imagens: Google



domingo, 29 de setembro de 2019

DIÁLOGO



Aguarela de ALLEN  EGAN


Diálogo

Levarás
pela mão
o menino
até ao rio. Dir-lhe-ás
que a água é cega
e surda. Muda,
não. Que o digam
os peixes, que em silêncio
com ela sustentam
seu diálogo
líquido, de líquidas
sílabas
de submersas
vogais.



Albano Martins, in "Castália e Outros Poemas"



Aguarela de autor desconhecido

terça-feira, 24 de setembro de 2019

ABRE-SE A JANELA DO OUTONO





Abre-se a janela do outono

Abre-se a janela do outono
e as luzes da saudade acendem,
mais uma vez, com um lamento,
as velas de pavios meio gastos…

nos caminhos e pelos ares,
as folhas das árvores
voam ao capricho do vento,

voam sem destino, a bailar
com graça, agilidade, leveza
e usam vestes ébrias de cores  
incendiando o tempo.

As árvores despidas choram,
mais uma vez,
e na sua nudez magoada
esperam em silêncio, braços abertos no ar,
o alcance do rumor primaveril,
                                                 novas folhas,
alegria nova e luminosa,
                                       exaltação, advento.


Maripa






Imagens: Pinterest