sexta-feira, 29 de abril de 2011

ECOS



Ecos de ti, sob o canto dos grilos,
em campos de orvalho e de erva-doce
nas esteiras do milho onde dormimos

deixaste num rasto coisas não ditas
que o tempo fará remedeio
entre a vida e um eco, de permeio

ecos de ti, sob cores de Maio,
em estradas percorridas de centeio
nas bermas, e apenas, no meio
o calor de noites já vividas.

Lua nova e amores desabridos
que me aquecem os sentidos
em campos de orvalho e de milho
sob um cheiro d'erva-doce.



Leonor de Saint Maurice

Imagem da internet

domingo, 24 de abril de 2011

TAMBÉM O DESERTO VEM



Também o deserto vem
do mar. Não sei em que navio,
mas foi desses lugares
que chegaram ao meu jardim
as palmeiras.
Com o sol das areias
em cada folha,
na coroa o sopro
ainda húmido das estrelas.


Eugénio de Andrade


imagem da internet

sexta-feira, 22 de abril de 2011

CONFISSÃO




De um e outro lado do que sou,
da luz e da obscuridade,
do ouro e do pó,
ouço pedirem-me que escolha;
e deixe para trás a inquietação,
a dor,
um peso de não sei que ansiedade.

Mas levo comigo tudo
o que recuso. Sinto
colar-se-me às costas
um resto de noite;
e não sei voltar-me
para a frente, onde
amanhece.


Nuno Júdice

Imagem: Darren Waterston

segunda-feira, 18 de abril de 2011

APESAR DE




" Uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de. Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar. Apesar de, se deve morrer. Inclusive muitas vezes é o próprio apesar de que nos empurra para a frente. Foi o apesar de que me deu uma angústia que insatisfeita foi a criadora da minha própria vida."


Clarice Lispector, in "Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres"



Imagem : net

terça-feira, 12 de abril de 2011

TÃO FUNDO O SILÊNCIO



É tão fundo o silêncio entre as estrelas.
Nem o som da palavra se propaga,
nem o canto das aves milagrosas.
Mas, lá, entre as estrelas, onde somos
um astro recriado, é que se ouve
o íntimo rubor que abre as rosas.



José Saramago

Imagem: Net

segunda-feira, 11 de abril de 2011

HÁ MUITO





Há muito que deixei aquela praia
De grandes areais e grandes vagas
Mas sou eu ainda quem na brisa respira
E é por mim que espera cintilando a maré vaza




Sophia de Mello Breyner

Imagem: Mário Silva

terça-feira, 5 de abril de 2011




[ ... ]

- E então não sei o que dizer
junto à taça de pedra do teu jovem silêncio.
Quando as crianças acordam nas luas espantadas
que às vezes se despenham no meio do tempo
- não sei como dizer-te que a pureza,
dentro de mim, te procura.

Durante a primavera inteira aprendo
os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
correr do espaço -
e penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas quando a sombra cai da curva sôfrega
dos meus lábios, sinto que me faltam
um girassol, uma pedra, uma ave - qualquer
coisa extraordinária.
Porque não sei como dizer-te sem milagres
que dentro de mim é o sol, o fruto,
a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,
o amor
que te procuram.




Herberto Helder
in
Poesia Toda



Imagem: Alloxa