sexta-feira, 20 de novembro de 2020

SONETO DE FIDELIDADE.

Pintura de Pascal Campion


Fazemos hoje 66 anos de estar juntos...


20.11.1954 - 20.11.2020



Soneto de fidelidade

 

De tudo ao meu amor serei atento

Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto

Que mesmo em face do maior encanto

Dele se encante mais meu pensamento.

 

Quero vivê-lo em cada vão momento

E em seu louvor hei de espalhar meu canto

E rir meu riso e derramar meu pranto

Ao seu pesar ou seu contentamento

 

E assim, quando mais tarde me procure

Quem sabe a morte, angústia de quem vive

Quem sabe a solidão, fim de quem ama

 

Eu possa me dizer do amor (que tive):

Que não seja imortal, posto que é chama

Mas que seja infinito enquanto dure.

 

Vinícius de Moraes





Mariage d´Amour - Paul de Senneville


terça-feira, 17 de novembro de 2020

ÁRVORES DE DOMINGO


painter: Alexander Prokopenko


Habito as distâncias

vivo dentro das distâncias

 

as tuas mãos, o teu rosto,

a claridade, que pelos teus olhos…

o mundo, que pelos teus olhos…

povoam as minhas distâncias.

Sabias?

 

Não. Ninguém sabe de ninguém os mundos

que cada um habita.

 

Falo-te. Nunca te disse.

em longas falas digo-te coisas tão particulares

de cada um de nós

de tudo em volta.

Das pequenas misérias diárias

dos pequenos nadas

do livro que se leu.

Do que se sente

do que se pressente

do que dói.

Das coisas diárias…

 

Do reparar nas coisas. A beleza das coisas.

Da harmonia do silêncio. A harmonia.

Das raízes sinuosas do afecto os inexplicáveis elos.

 

Tudo fica entre mim.

É quasi perfeito como diálogo, o nosso.

Que me responderias?

Que me poderias responder melhor

do que aquilo que te atribuo como resposta?

 

Na minha distância espero-te

sabendo que não sabendo tu que te espero

nunca virás.

É isso essencialmente a distância.

Aí preparo em cada dia especiais momentos

para a tua inexplicável chegada.

 

 

Maria Keil, 

Árvores de domingo (Livros Horizonte, 1986)





Mural de Maria Keil na Av. Infante Santo em Lisboa


Maria Keil fez pintura, sobretudo retratos; publicidade; tentativas de renovação da talha em madeira para móveis e desenho de móveis; decoração de interiores; cartões para tapeçarias (Hotel Estoril Sol, TAP de Nova Iorque, Copenhaga, Madrid, Casino Estoril, etc.); pinturas murais a fresco; cenários e figurinos para bailados; selos; azulejos (Metropolitano de Lisboa, Av. Infante Santo, TAP de Paris e Nova Iorque, União Eléctrica Portuguesa, Casino de Vilamoura, Aeroporto de Luanda, etc.). 

Ilustrou numerosas obras, nomeadamente livros para crianças. Escreveu e ilustrou três livros para crianças e dois para adultos: O pau-de-fileira, Os presentes e As três maçãs; Árvores de domingo e Anjos do mal.

 

 


sábado, 14 de novembro de 2020

A FONTE DA VIDA

 


Imagem: Flickr

 A fonte da vida

 

A montanha de pedra,

as árvores apontam para o azul,

o sol pulsando como um coração

– e a fonte a jorrar.

 

Vejo a explosão da água na pedra,

vejo o brilho da água,

vejo a alma da água

– a jorrar entre o céu e a terra.

 

Vejo a semente,

vejo a terra tombada,

vejo o homem caminhando sobre a terra,

– vejo a fonte a jorrar.

 

O húmus regurgita de vida,

a semente germina

e a água eterna         

– na fonte a jorrar.


José Carlos Mendes Brandão







Camille et Julie Berthollet - Palladio By K. Jenkins 


terça-feira, 10 de novembro de 2020

ABRAÇADA A MIM

 


Aninhada em mim

 

Abraçada a mim

olhos baços,

conto passos e mais passos

que fazem meus cansaços.

 

Aninhada em mim,

braços lassos,

colo pedaços, esparsos

do que fui a espaços.

 

Aninhada em mim

ouço os compassos

da música que me habita

e adoça os traços.

 

Abraçada a mim

recebo os abraços

que vêm de longe

e unem nossos laços.

 

Maripa

 




Abel Korzeniouski - Come, gentle night

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

O PICA DO 7

 

ecrã inteiro

O Pica do 7

De manhã cedinho

Eu salto do ninho e vou p’rá paragem

De bandolete, à espera do sete

Mas não pela viagem

 

Eu bem que não queria

Mas um certo dia, vi-o passar

E o meu peito céptico

Por um pica de eléctrico voltou a sonhar

 

A cada repique

Que soa do clique da aquele alicate

De um modo frenético

O peito é céptico toca a rebate

 

Se o trem descarrila

O povo refila e eu fico no sino

Pois um mero trajecto

No meu caso concreto, é já o destino

 

Ninguém acredita no estado em que fica o meu coração

Quando o sete me apanha

Até acho que a senha me salta da mão

Pois na carreira desta vida vã

Mais nada me dá a pica que o pica do sete me dá

 

Que triste fadário

E que itinerário tão infeliz

Traçar meu horário

Com o de um funcionário de um trem da carris

 

Se eu lhe perguntasse

Se tem livre passe para o peito de alguém

Vá-se lá saber

Talvez eu lhe oblitere o peito também

 

Ninguém acredita no estado em que fica o meu coração

Quando o sete me apanha

Até acho que a senha me salta da mão

Pois na carreira desta vida vã

Mais nada me dá a pica que o pica do sete me dá

Mais nada me dá a pica que o pica do sete me dá


Letra e música de Miguel Araújo





Carro  elétrico de Lisboa


quinta-feira, 5 de novembro de 2020

PALAVRAS de outros

Imagem Google


Clarice Lispector dizia: “Somos a única presença que não nos deixará até a morte, e assim é. Que eu não apenas tolere minha companhia, mas seja minha melhor parceria. Que eu aprenda a me poupar, a me defender, a me escutar e compreender. Que eu aprenda a ficar só, e tolere o peso da minha solidão e do meu silêncio.

 

 E, a exemplo de Hermann  Hesse, que eu comece a ouvir os ensinamentos que meu sangue murmura em mim”…





Oblivion [Astor Piazzolla] by Nadia Kossinskaja

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

E O LONGE É UM LUGAR ESTRANHO

 




E o longe é um lugar estranho

 

Tempestade dentro,

coração prestes a galgar o peito,

sonhos arrumados perto do inatingível.

 

Cansada de mim,

da concha donde me foi sugada tanta energia,

_ lágrimas furtivas entranhadas na pele _

ajoelho no tempo.

 

Sobra-me o desejo.

O desejo de mergulhar no sono...

De mergulhar no mar

onde voam gaivotas felizes e o azul

me permanece tatuado na memória.

Desejo de partir para longe...

 

E o longe é um lugar estranho.


Maripa

[já publicado]




Khatia Buniatshvilli
Schubert: Impromptu Nº3