terça-feira, 31 de agosto de 2021

NÃO SEI DEFINIR A COR DA MADRUGADA

Painting by Amanda Miyuki


 

Não sei definir a cor da madrugada.

O gosto sim.

 

Sabe-me a creme [de]leite

polvilhado com canela,

a suaves fantasmas da infância

a entrar pela janela.

 

E quando  nasce o Sol,

 surpreende-me

ensonada e desprevenida,

a alinhavar palavras

concisas ou sem nexo

_ sinais da cruz _

do carnaval da vida.

 Maripa

[já publicado]


YUJA WANG plays RACHMANINOV


segunda-feira, 23 de agosto de 2021

PALAVRAS-BORBOLETA

Imagem Pinterest

 

Palavras-borboleta

 

A névoa cobre os tetos da cidade...

Palavras cansadas espreguiçam-se,

languidamente,

e espreitam pela janela entreaberta

a nudez das folhas em branco

no caderno ainda meio adormecido.

 

As palavras precisam ser regadas

pelo orvalho das manhãs

para serem renovadas e belas...

 

Sei que há palavras que dizem tudo,

ou quase tudo,

que cantam hinos ao sol e à lua,

aos rios e aos mares,

palavras macias como veludo

a fazer nascer borboletas nos dedos

de mãos que não desistem de tocar as estrelas.

 

[preciso tanto de palavras-borboleta para navegar]


Maripa


 

"PURE YANNi" - Butterfly Dance


quarta-feira, 18 de agosto de 2021

DENTRO DOS TEUS OLHOS NAVEGO MAR ADENTRO

Painting  by Justyna Kopania


 

Dentro dos teus olhos navego mar adentro...

Não importa

o tempo sem tempo da espera.

O tempo do derramar

flores para ondear nas águas.

Não importa.

 

Pétalas hão-de cair dos mastros

da caravela onde hei-de dormir

o sono-sonho despido de mágoas.

Importa sim

que mar adentro,

dentro dos teus olhos,

afogue os meus num sonho branco.

Sono-sonho, isento de pecado,

mar de devaneios inocentes

onde mergulhe

e floresça em espuma.

Sono-sonho,

praia bordada de amores-perfeitos

onde a maresia me perfuma.

 Maripa  16 .12. 2008



HAUSER - Playing Love

 

quinta-feira, 12 de agosto de 2021

CANÇÃO DA MINHA TRISTEZA

 





Canção da Minha Tristeza

 

Meu coração não está nas largas avenidas

nem repousa à tarde, para lá do rio.

Nada acontece. Nada. Nem, ao menos, tu

virás despentear os meus cabelos.

 

Nem, ao menos, tu, neste tempo de angústia

vens dizer o meu nome ou cobrir-me de beijos.

Ah, meu coração não está nas largas avenidas

nem repousa à tarde, para lá do rio.

 

A cidade enlouquece os meus olhos de pássaro.

Eu recuso as palavras. Sei o nome da chuva.

Quero amar-te, sim. Mas tu hoje não voltas.

Tu não virás, nunca mais, ó minha amiga.

 

Nada acontece. Nada. E eu procuro-te

por dentro da noite, com mãos de surpresa.

Meu coração não está nas largas avenidas

nem repousa à tarde, para lá do rio.

 

E tu, longe, longe. Onde estás meu amor,

que não vens despentear os meus cabelos?

Eu quero amar-te. Mas tu hoje não voltas.

Tu não virás, nunca mais, ó minha amiga.

 

Joaquim Pessoa, in 'Canções de Ex-Cravo e Malviver



Guitarra Triste

Guitarras : Domingos CaGmarinha e Santos Moreira

segunda-feira, 9 de agosto de 2021

NÃO HÁ, NÃO

 

Pintado porAnand Swooarup

 

 Não há, não,

duas folhas iguais em toda a criação.

Ou nervura a menos, ou célula a mais,

não há, de certeza, duas folhas iguais.

 

Limbo todas têm,

que é próprio das folhas;

pecíolo algumas;

baínha nem todas.

Umas são fendidas,

crenadas, lobadas,

inteiras, partidas,

singelas, dobradas.

 

Outras acerosas,

redondas, agudas,

macias, viscosas,

fibrosas, carnudas.

 

Nas formas presentes,

nos actos distantes,

mesmo semelhantes

são sempre diferentes.

 

Umas vão e caem no charco cinzento,

e lançam apelos nas ondas que fazem;

outras vão e jazem

sem mais movimento.

 

Mas outras não jazem,

nem caem, nem gritam,

apenas volitam

nas dobras do vento.

 

É dessas que eu sou.

 

António Gedeão, Poesias Completas


Autumn Leaves - Yenne Lee


terça-feira, 3 de agosto de 2021

NO SILÊNCIO DO PEITO

 




No silêncio do peito

 

No silêncio do peito

guardo um cofre de palavras

a quem dou asas para voar.

 

Nas mãos enrugadas

enovelo o fio

que entrelaça o tempo.

 

Nos olhos cansados

arrecado poeiras fugídias

de estrelas cadentes.

 

E porque não é  tempo de noites longas

encosto um búzio ao meu ouvido,

escuto o mar

               e espero o dia amanhecer.


Maripa



Thalassa - Stamatis Spanoudakis

IMAGEM: PINTEREST