terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

NÃO SEI DEFINIR A COR DA MADRUGADA




Não sei definir a cor da madrugada.
O gosto sim.

Sabe-me a creme (de)leite
polvilhado com canela
a suaves fantasmas da infância
a entrar pela janela
quando o nascer do Sol
me surpreende
- ensonada e desprevenida -
a alinhavar palavras
concisas ou sem nexo
- sinais da cruz -
do carnaval da vida.
Maripa

Imagem de V. Kush

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

SE EU NÃO TE AMAR MAIS



Se eu não te amar mais me
Caia o mar nos ombros
Me caia
Este silêncio pelos ossos dentro
Me cegue os olhos esta sombra
Me cerre
Esta noite num escuro mais profundo
Do que a chuva de ti de mãos tão leves
A figueira do meu sangue se emudeça
De pássaros à espera dos teus passos
De outra voz por sobre a minha
Morta
E as ruas do teu corpo eu desaprenda
Como eu desaprendi os dedos que me tocam
E se eu não te amar mais me caia a casa
De costa no teu peito como o vento


António Lobo Antunes

Imagem da Net


domingo, 15 de fevereiro de 2009

SÓ MAIS UM INSTANTE



Pára um instante, amor,
deixa-me olhar
o branco-rosado
das macieiras em flor.
Deixa-me beber
um cálice do néctar
de instantes
do nosso passado.

Ouve,
escuta o arpejo das aves
a saltar de ramo em ramo
ávidas da melodia
do teu beijo no meu beijo.

Só mais um instante, amor...
Tenho frio.
Aqueces as minhas mãos
na hora do sol se pôr?


Maripa

Imagem de Samuel Sevada

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

SOMEWHERE IN TIME





"Somewhere in time" e Maksim Mrvica - pianista croata.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

NO MEU AMAR


No meu amar nunca és sombra
nem crepúsculo.
És o sol que me apetece.

Senhor de mistérios e de mitos.
Aquário de poentes
de caravelas
de naus.
Espelho ondulado das estrelas.

Senhor de falas secretas.
Jardim de peixes
de anémonas
de corais.
Jardim onde bebem os poetas.

Meu mar de perdição
de fascínio
de beleza
em ti me afogo cantando
para dissolver a tristeza.


Maripa

Imagem de Tim Wistrom

sábado, 7 de fevereiro de 2009

QUADRO


Quadro

Há um pintor que pinta a negro e branco
para chegar aos vários tons de azul e verde.
Eu digo a cor suprema
onde todas se conjugam e nenhuma
se perde.
O anel de nuvens e de bruma
em volta do poema.
Ou o som do silêncio. A fala e o vento.
Ou talvez o basalto
e o tom incerto
do cinzento.
E de súbito o Pico a descoberto
o azul o branco a luz do alto.

Manuel Alegre

Foto de 1992 ( ...o Pico visto da ilha do Faial) ...saudades.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

NÃO É DE ROSAS O MAR...


Face pálida de esperança
e réstea de roxo no olhar
navego
navego
nas ondas alterosas do mar
espelhado de cristal violeta.

Não é de rosas o mar...

É de instantes fugídios
do relógio que me pulsa.
Caixa preta
dos últimos devaneios.

Não é de rosas o mar...

O mar é o limite,
a luz do voo
onde acendo meus anseios.
Maripa

Imagem da Net

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009




(...) A memória é uma paisagem contemplada de um comboio em movimento. Vemos crescer por sobre as acácias a luz da madrugada, as aves debicando a manhã, como a um fruto. Vemos, além, um rio sereno e o arvoredo que o abraça. Vemos o gado pastando lento, um casal que corre de mãos dadas, meninos dançando o futebol, a bola brilhando ao sol ( um outro sol). Vemos os lagos plácidos onde nadam os patos, os rios de águas pesadas onde os elefantes matam a sede. São coisas que ocorrem diante dos nossos olhos, sabemos que são reais, mas estão longe, não as podemos tocar. Algumas estão já tão longe, e o comboio avança tão veloz, que não temos a certeza de que realmente aconteceram. Talvez as tenhamos sonhado. Já me falta a memória, dizemos, e foi apenas o céu que escureceu. (...)

José Eduardo Agualusa

Excerto de " O vendedor de passados"
Imagem de S. Lavrentiev

José Eduardo Agualusa é natural de Huambo, onde nasceu em 1960. De ascendência portuguesa e brasileira, gosta de se definir como um afro-luso-brasileiro. A sua obra vive dessa dispersão de raízes e de uma constante viagem entre lugares e pessoas.
É autor de Nação Crioula, Um estranho em Goa e O Ano em que o Zumbi Tomou o Rio ( entre outros títulos).