"Estanquei as pernas , sacudi a cabeça. Tudo aquilo me surgia sem a devida realidade. O avô, por exemplo, segurava uma cana de pesca. O fio pequeno e o anzol ficavam suspensos a uns palmos do chão. Pescava no ar. Haveria, dizia ele, sempre um peixe que não saberia separar as águas. O avô, mais os seus ditos. Enquanto fingia pescar, os olhos fixavam um inexistente horizonte. Pensava no nascimento da bezerra?
Recordei os tempos em que, todos os domingos, ele me levava à pesca. Sem conversa, nos quedávamos na margem enquanto olhávamos o rio e suas eternidades. Pescar é um modo de ser peixe nas águas do tempo.
- Pescar é muito bom. E sabe porquê? Porque é uma actividade sem nenhuma acção. Está entender,meu neto?
- Sim, avô.
- Você também gosta desta pescatez, não é?
Lá no alto, a águia pesqueira volteava. O avô dizia de um modo que soava assim:
- Olha a água pesqueira!
A água pesqueira, sim. Me aprazia pensar que era o rio, ele mesmo, quem pescava. O avô muito elogiava as sábias preguiças. Certa vez me tentou convencer de que o mundo andava tão ocupado a nada fazer que até o rio por vezes parava.
- O rio parado? Mas, avô, isso é coisa que nunca ninguém viu.
- Isso é porque o rio desata a mover-se assim que vê gente chegando.
Nesse jogo de enganos eu me embalava enquanto o mais-velho cantarolava como se espreguiçasse. E era sempre a mesma cantilena:
O rio,----------- Macio,
sem cio,-------- sem pio,
um fio.---------- um pavio.
Eu aguardava um só instante: o de desanzolar o peixe, o escorregadio corpo do bicho prateando em minhas mãos.
- Cuidado, não se pique!
Meu avô era o único que me dedicava cuidados. Nem meu pai nem minha mãe nunca me tinham lustrado em mimos. Por isso, mais que a chuva, me doía aquele definhamemento dele. Não é que, antes, ele não fosse já magro. Mas , agora, se extinguia a olhos vistos. Seu estado se precipitara desde que soube que o rio tinha secado. Nunca mais comeu, nunca mais bebeu. Aquela rejeição me causava estranheza. Afinal, o avô sempre dissera:
- A velhice não é uma idade, é uma decisão.
- Uma decisão?
- A velhice é uma desistência.
Desistido, meu avô cedera ao tempo. E agora, uma vez mais, eu interrompia a sua imaginária pescaria para lhe levar um copo de água. Mas o avô recusou, sorrindo:
- Não se afija, eu bebo como os pássaros, debico nas gotas.
Ajeitei a manta sobre as suas pernas que despontavam como galhos pontiagudos. Ele entendeu os meus cuidados e se explicou:
- Já vi o rio minguar, tantas vezes. Mas secar assim tão completamente é coisa que nunca eu podia imaginar. Diga, meu neto: você sabe quem é esse rio?
- Quem é o rio? - estranhei.
- Vou-lhe contar uma história, meu filho.
- Uma história com final feliz?
Eu já sabia: a única história com final feliz é aquela que não tem fim. Era assim que ele dizia. Desta vez, porém, o tom era outro, nem eu lhe reconhecia o pigarrear grave.
- Não é uma história. É um segredo que corre na família. Escute com atenção.
- Eu escuto sempre com toda a atenção.
- Não é isso. É que vai ouvir a minha voz, no princípio. Depois, já no fim,escutará apenas a voz da água, a palavra do rio.
Enquanto o avô ia revelando a lenda, eu me embalava como se, de novo, me entretivesse em pescarias."
Mia Couto
Texto do livro " A chuva pasmada"
Doce embalo da lembrança...
ResponderEliminarfeliz final de semana minha flor,
carinho meu
beijos
Magnífico.
ResponderEliminarBom fim-de-semana, um abraço.
Um belo texto. Muito bem escolhido.
ResponderEliminarBeijos
Triste, mas real para alguns - a velhice é uma desistência. Por isso devemos persistir sempre.
ResponderEliminarA escolha adequada, para orlar uma imagem lindíssima.
ResponderEliminarParabéns amiga.
Um beijinho carinhoso
Querida e doce Maripa, vim deixar-lhe um abraço cheio de carinho, paz e alegria.
ResponderEliminarBoa semaninha.
Beijinhos carinhosos.
(...)Enquanto fingia pescar, os olhos fixavam um inexistente horizonte.(...)Pescar é um modo de ser peixe nas águas do tempo.
ResponderEliminar(...) A velhice não é uma idade, é uma decisão.
- Uma decisão?
- A velhice é uma desistência
(...)a única história com final feliz é aquela que não tem fim. Era assim que ele dizia. Desta vez, porém, o tom era outro, nem eu lhe reconhecia o pigarrear grave.
(...)É que vai ouvir a minha voz, no princípio. Depois, já no fim,escutará apenas a voz da água, a palavra do rio.
Não sonhas o quanto adorei este livro...e fico pasmada com tanta coisa em comum...
já agora deixa-me perguntar-te já çeste Ondjaki? è que eu sou completamente vidrada neste escritor ainda tão noco e dois livros me marcam demais (Os da minha Rua) e agora o ultimo(a Avó dezanove e o segredo soviético).
Jinhos mil
Eu e o Mar
Tu e o Mar